Faculdades na berlinda: de 305 cursos de medicina avaliados em 2023 no último Enade, apenas seis atingiram nota máxima no Conceito Preliminar de Curso — um dos principais indicadores da qualidade do ensino.
Doze estudantes de medicina foram desligados e outros 11 afastados da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, depois de cantar um hino e levar uma faixa com apologia ao estupro durante uma competição esportiva universitária.
Em outro caso recente, três estudantes de medicina expuseram pacientes em situação de vulnerabilidade nas redes sociais, gerando revolta e ojeriza, especialmente porque a atitude vai de encontro à premissa da escolha profissional que fizeram: acolher, preservar o sigilo e cuidar das pessoas.
Em Anápolis, Goiânia, uma estudante de Medicina não identificada filmou a realização de um exame ginecológico, expondo a intimidade da paciente, dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Há três semanas, Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano publicaram um vídeo zombando da situação de Vitória Chaves da Silva – uma jovem de 26 anos com uma cardiopatia crônica congênita que realizou três transplantes de coração e um de rim.
Os dois episódios mostram que há algo de errado na formação dos novos profissionais da medicina. Para médicos e especialistas consultados pela reportagem, a questão vai além da influência da ética pessoal e da formação de base de cada pessoa. As instituições, essenciais no desenvolvimento dos futuros médicos, estão falhando em estabelecer critérios rigorosos de seleção, formação e correção de condutas.
“A responsabilidade é multifatorial, não apenas da universidade. Existe a formação pessoal e familiar, mas a universidade tem papel fundamental, seja para coibir (esses comportamentos) ou educar”, diz Estevão Toffoli Rodrigues diretor vice-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM). De acordo com ele, “é possível ensinar ética. A medicina tem um grande potencial na vida das pessoas, na sociedade, e usá-la da forma incorreta pode ser perigosíssimo”.
Expansão desordenada
Para o setor, em geral, a qualidade no ensino, e consequentemente a régua no padrão da graduação de Medicina, piorou nos últimos anos, à medida que houve uma expansão desenfreada na graduação médica nos últimos anos.
Um marco dessa expansão é o ano de 2013, quando o lançamento do Programa Mais Médicos deveria, em tese, incentivar a criação de cursos particulares em regiões com poucos médicos.
O programa impulsionou o setor privado, tornando as escolas de medicina um negócio lucrativo, atraindo inclusive grupos especializados na compra de faculdades de medicina, com mensalidades de R$ 10 mil — em média — e baixa evasão escolar.
Entre 2010 e 2020, houve um salto de 120% na quantidade de vagas ofertadas em Medicina no país – sendo 80% particulares.
Em 2018, no entanto, o então presidente Michel Temer suspendeu a abertura de novos cursos. Por causa disso, muitos pedidos de abertura foram feitos por via judicial, driblando os parâmetros estabelecidos pelo MEC e contribuindo para a queda da qualidade do ensino.
Dados do Ministério da Educação (MEC) corroboram a percepção. De acordo com o último Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), realizado em 2023, dos 305 cursos avaliados, apenas seis atingiram nota máxima no Conceito Preliminar de Curso (CPC) — um dos principais indicadores da qualidade do ensino superior.
A pesquisa ainda mostra que, em 2023, 39,8% das instituições públicas tiveram desempenho acima do esperado enquanto nas privadas o índice foi de 12,23%. Entre as que ficaram abaixo do esperado, 6,8% eram públicas e 16,49%, particulares.
Em 2019, 13% dos cursos de Medicina foram considerados insatisfatórios no Enade. Em 2023, esse índice subiu para 20%, conforme levantamento do jornal O Globo.
Seleção pouco criteriosa
Para o professor e pesquisador Bruno Luciano Carneiro de Oliveira, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o problema não está na rede privada em si, mas na abertura desordenada, sem infraestrutura e corpo docente adequados, alheios às necessidades do sistema público de saúde.
“A iniciativa privada atua seguindo o interesse do mercado, e não as demandas da população. Por exemplo, continuam a abrir cursos no Sul e Sudeste, onde já há muitos, e isolados da rede pública de saúde”, explica Oliveira, autor de estudos sobre o mercado de trabalho e qualidade do ensino na saúde.
“Comparado com as públicas, as faculdades particulares têm menor desempenho, e o Enade mostra isso. Esses cursos poderiam ter grande qualidade se o processo de seleção fosse mais rigoroso”, diz Oliveira.
Exame nacional vai medir qualidade do ensino médico
Diante das críticas, o MEC lançou neste mês o Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), para avaliar instituições e estudantes do último ano do curso de Medicina. O teste unifica o Exame Nacional de Desempenho Estudantil (Enade) e o Exame Nacional de Residência (Enare).
Diferentemente do Enade que acontece a cada três anos e com 40 questões, o Enamed será realizado anualmente e terá cem perguntas de múltipla escolha. A prova é obrigatória para os estudantes do último ano e abordará temas sobre clínica médica, cirurgia geral, pediatria, saúde mental e medicina da família, entre outros. A primeira edição do exame está prevista para outubro.
No dia do lançamento da prova, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, destacou a importância das instituições na formação dos jovens médicos e a situação das escolas particulares que o ensino enfrenta hoje neste setor.
“Ao avaliar o progresso da formação, abre-se um olhar para a instituição formadora e não em transformar qualquer problema na formação como ato individual do aluno. Como boa parte da formação médica no nosso país é paga, é importante observar a instituição, senão elas podem continuar a faturar com mensalidade enquanto oferecem baixa qualidade na formação.”
Para Rodrigues, da ABEM, não adianta avaliar o aluno e continuar a abrir novos cursos se as instituições mal avaliadas não forem fechadas ou impedidas de fazer vestibular. A prova no final do curso, diz ele, desresponsabiliza a faculdade e coloca o peso da qualidade sobre o estudante. “A avaliação deve ser contínua, ano a ano, para que ajustes sejam feitos durante o progresso do aluno”.
Waldir Cardoso, do Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa), compartilha a visão de Rodrigues e considera que, ao avaliar somente às vésperas de terminar a graduação, o aluno é “punido” e não corrigido.
“A princípio, (o Enamed) é melhor do que não fazer nada, mas não adianta chegar no final do curso e constatar que se está formando maus profissionais. As instituições devem ser obrigadas a corrigir o que está errado e, se não o fizer, fechar e transferir os alunos”.
No lançamento do Enamed, o ministro da Educação, Camilo Santana, disse que pretende, em um segundo momento, criar uma prova que vai avaliar os estudantes na metade da graduação, para fazer as correções necessárias antes do fim do curso.
Para Oliveira, da UFMA, este seria o caminho ideal: “A combinação é o melhor: fazer as avaliações periódicas que ajudam a reorganizar o que está em curso e, no final, um processo avaliativo mais voltado para inserção no mercado de trabalho”.
O Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), por sua vez, afirmou em nota que o exame pode fortalecer a formação médica. Todavia, a entidade defendeu que não sejam criadas novas ferramentas de avaliação.
Professores menos qualificados e alunos desinteressados
“Não tem como ampliar tanto com qualidade. No Pará, por exemplo, a quantidade de instituições mais do que dobrou. Em um estado como o nosso não há médicos suficientes para atuar como professores, então, logicamente, a qualidade do ensino cai”, diz Cardoso, do Sindmepa.
Oliveira diz que, com menor concorrência, as instituições conseguem reduzir salários, o que impacta a qualificação dos professores e, em consequência, a formação dos alunos.
Médica há 22 anos, a ginecologista e obstetra Beatriz Barbosa afirma não se tratar de uma questão meramente acadêmica. Além do atendimento em consultório, ela sempre recebeu vários estudantes no hospital público em São Paulo para estágio ou residência. Mas desistiu de ser perceptora (mentora) de alunos.
“A gente vê um desinteresse total em geral. Na minha época de residência, eu e meus colegas brigávamos para assistir um parto e participar de uma cirurgia. Agora, os estudantes não fazem questão e às vezes até pagam para outra pessoa fazer o plantão no lugar delas”, diz.
Em oito anos, a concorrência para ingresso em medicina caiu pela metade, de 46,5 para 20,4 candidatos/vaga, segundo o estudo Demografia Médica no Brasil, desenvolvido no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
“Antes, o funil para entrar em Medicina era mais estreito, e tinha aquela história de vocação. Com mais faculdades, é mais fácil entrar e a pessoa faz, muitas vezes, por status, sem entendimento do cuidado com a vida do outro”, diz Beatriz.
Outro agravante é a amplificação que as redes sociais causam. Rodrigues diz que sempre houve conversa entre profissionais de saúde sobre prontuário de pacientes. Beatriz, por exemplo, conta que já tirou fotos de pacientes com casos interessantes: “Mas sempre com autorização, sem identificar, com os cuidados necessários”.
“As redes sociais são importantes hoje para os médicos, mas tem que saber usar. Para esta geração que já nasceu com o celular na mão, é normal gravar e expor, mas na medicina tem que ter filtro”, diz Beatriz.
Consequências legais para o estudante
Certos deslizes, como a exposição dos pacientes nas redes sociais, não são resolvidos apenas na conversa. Mayra Pereira e Silva, especialista em direito da saúde e sócia do Vieira e Marques Sociedade de Advogados, alerta que estudantes podem responder criminal e administrativamente.
“O estudante não está submetido ao Código de Ética do Conselho Federal de Medicina (CFM), porém, deveria, como qualquer ser humano, ter cuidado e não passar nenhum tipo de informação, principalmente sem consentimento. Isso pode gerar uma violação penal, um crime, infrações éticas e inclusive pedidos de indenização da esfera civil”.
A família de Vitória Chaves da Silva denunciou à polícia e ao Ministério Público as estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano, que gravaram um vídeo falando da situação da paciente. O caso está sendo investigado como injúria pela Polícia Civil.
“Essa menina tá achando que tem sete vidas?” (sic), disse uma delas no vídeo. As estudantes não citam o nome de Vitória, mas dão detalhes do caso que a identificam e dizem que um dos transplantes não deu certo porque a paciente não se comprometeu com o tratamento.
Vitória morreu nove dias após a publicação do vídeo devido a um choque séptico e insuficiência renal crônica. Ela nasceu com cardiopatia crônica e já havia passado por quatro transplantes de órgãos.
Por nota, as alunas disseram à imprensa que “não houve qualquer deboche ou insensibilidade e que a única intenção do conteúdo do vídeo era expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio”.
A Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, onde Gabrielli estuda, e a Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (Faseh), em Minas Gerais, onde Thaís cursa medicina, responderam, por nota, que lamentam o ocorrido e que se solidarizam com os familiares da paciente.
Já a estudante que gravou e publicou um exame ginecológico feito em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Goiás foi suspensa por cinco dias, segundo a Universidade Evangélica de Goiás (Unievangélica), onde estuda. A Secretaria Municipal de Saúde de Anápolis notificou a universidade e solicitou providências.
No caso dos estudantes da Faculdade Santa Marcelina, a instituição informou em sua rede social que, além dos que foram desligados, os outros 11 “receberam sanções regimentais que configuram suspensões e outras medidas disciplinares”. A Associação Atlética Acadêmica, que no site da instituição diz que “serve de válvula de escape, promovendo equilíbrio e bem-estar”, será mantida interditada por tempo indeterminado.
O CFM afirmou estar preocupado com “a ausência de senso crítico quanto a publicações nas redes sociais’, e disse que é necessário que o estudante de medicina comece a entender desde cedo que o elemento mais importante na relação da medicina com a sociedade é a capacidade do médico em manter sigilo. “Esta é a base da confiança entre o médico e o paciente”.
(Por Emanuelle Munhoz da Silva com Gazeta do Povo)
