Por Franklin Ferreira*
O documentário Rio de Janeiro: Paraíso em Chamas, produzido pela Brasil Paralelo, mergulha na complexa e alarmante realidade da violência que assola o que já foi a Cidade Maravilhosa, um dos maiores símbolos da beleza e cultura brasileira.
A obra traça um panorama histórico recente, explorando como o Rio de Janeiro, outrora celebrado como um paraíso tropical, tornou-se um campo de batalha dominado por facções criminosas. Por meio de depoimentos impactantes de moradores, policiais e antigos criminosos, o filme revela a ascensão do crime organizado nas favelas, a conivência de setores do poder público e a deterioração da segurança, que resultaram em números chocantes, como 684 assassinatos em apenas dois anos em um único bairro.
Com uma narrativa crua e investigativa, o documentário busca expor as raízes dessa crise, questionando as dinâmicas sociais, políticas e econômicas que transformaram o Rio em um “paraíso em chamas”. Juan de Paula Santos Siqueira, pastor batista, professor de Teologia e membro da equipe pastoral da Igreja Batista Orla Rio, nos oferece uma resenha desse documentário.
Depoimentos sobre organizações criminosas
No dia 16 de abril de 2025, faltando dois dias para o feriado da Semana Santa, a Brasil Paralelo, empresa privada que trabalha com produção de conteúdo, informações e formação cultural com a missão de resgate de valores, ideias e sentimentos para o coração dos brasileiros, lançou o seu novo documentário Rio de Janeiro: Paraíso em Chamas, dirigido por Asaph Hiroto, com a produção de Ronai Chiccarelli Jr. e Tamires Rodrigues, roteiro de Henrique B. Omegna, e contando com entrevistados já conhecidos da área de segurança pública, como o capitão da reserva do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) Rodrigo Pimentel, o coronel da reserva do Exército Brasileiro, Alessandro Visacro, especialista em segurança e defesa e autor de vários livros, o procurador do Estado do Rio de Janeiro, Marcelo Rocha Monteiro, o historiador Rafael Nogueira, antigo presidente da Biblioteca Nacional, o delegado da Polícia Civil Fabrício Oliveira, da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, delegado federal Victor Santos, o vereador do município do Rio de Janeiro Rafael Satiê (do PL), dentre outros policiais civis e penais, juíza de direito, presidentes de associação de moradores de comunidades do Rio de Janeiro e até antigo integrante de uma facção criminosa.
O documentário, ainda que não se afirme como tal, pode ser considerado uma sequência da produção da mesma empresa, Entre Lobos, que foi resenhada nesta mesma coluna por este mesmo autor, sob o título Os lobos estão entre nós, sendo esta a primeira produção da Brasil Paralelo na área de segurança pública. A diferença é que o primeiro tem como enfoque a segurança pública, ainda que começando e passando pelo Rio de Janeiro, mas como um problema de alcance nacional; o segundo foca exclusivamente na cidade do Rio de Janeiro.
A destruição de um paraíso urbano
O subtítulo Paraíso em Chamas chama a atenção para o paradoxo de uma cidade muito bonita do ponto de vista da beleza natural, ao mesmo tempo mostrando os problemas caóticos que assolam essa cidade, tida como “a capital cultural do Brasil”. Apesar de toda a sua beleza natural e charme, o Rio de Janeiro, que sempre foi uma cidade com alto potencial turístico, agora tem a fama de uma cidade marcada pela violência, criminalidade e ausência do poder público em alguns territórios.
Interessante é que o documentário, que começa e ocasionalmente apresenta animações visuais, também ilustra o seu conteúdo com uma jovem mulher, dotada de beleza física e charme, que progressivamente vai perdendo o seu encanto por abusos de bebida alcoólica e por ser vítima de violência. O documentário começa com a seguinte indagação: “Da capital do Brasil ao símbolo de violência urbana, o que aconteceu com o Rio de Janeiro?” Outrora chamada pela alcunha de “Cidade Maravilhosa”, conforme a marcha “Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”, agora exporta a prática criminal por todo o país e até internacionalmente.
O documentário conta com uma introdução com declarações dos entrevistados acerca da beleza natural do Rio de Janeiro e a sua estética paradisíaca, e a sua transição para uma cidade marcada por eventos violentos similares às guerras internacionais. Logo no início, Rodrigo Pimentel fala que o problema do Rio de Janeiro não é mais a guerra às drogas (uma marca dos governos conservadores no período da Guerra Fria), mas sim o “domínio territorial” das facções criminosas em áreas vulneráveis do Rio de Janeiro.
Esse paradoxo da beleza e do caos, parafraseando a cantora pop Fernanda Abreu, é exemplificado com uma imagem do Cristo Redentor, patrimônio da UNESCO, cuja entrada fica na Zona Sul carioca, e pelos eventos de 20 de outubro de 2024, quando disparos com armas foram efetuados em direção aos ônibus na Avenida Brasil, causando feridos e óbitos em pessoas inocentes, em virtude de uma operação para capturar uma liderança ligada ao narcotráfico. Com isso, Rodrigo Pimentel apresenta números de áreas controladas pelo poder paralelo, representado por diferentes facções criminosas, e Rafael Nogueira e Alessandro Visacro salientam o problema da soberania do Estado em relação aos territórios chamados de black spots, onde vivem 4,4 milhões de pessoas.
Essas organizações criminosas trabalham a partir de uma lógica da desordem, segundo Visacro, com quatro eixos, a saber: em primeiro, normas; em segundo, extorsão; em terceiro, zonas de silêncio; e, por fim, cultura. Segundo essa perspectiva, através das normas, se obtém o controle do território. Nas palavras de Marcelo Monteiro, esse fenômeno perdura há quatro décadas no Rio de Janeiro.
Cenas de uma guerra urbana
O primeiro capítulo do documentário, intitulado “Da faca ao fuzil”, apresenta o surgimento de facções criminosas dentro de instituições de custódia, especificamente no fechado presídio da Ilha Grande (município de Angra dos Reis), no ano de 1979, período do Governo Militar, em que presos políticos esquerdistas, com cursos de guerrilha feitos fora do país, foram detidos junto com presos por delitos comuns.
Esses presos por delitos foram instruídos em lógicas revolucionárias e criaram a facção criminosa “Falange Vermelha”, posteriormente renomeada para “Comando Vermelho”. Ao serem liberados da detenção, os membros da facção foram para locais chamados de “favelas”, crescendo como organização, mas também sofrendo divisões e rachas, criando “concorrências”.
Segundo Cláudio Piuma, vulgo “Gaúcho”, antigo membro da facção, a ideia do “Comando Vermelho” é ser, para o espaço ocupado, aquilo que o Estado não é, apresentando uma “falsa ordem” e “justiça”. Ao mesmo tempo, o documentário apresenta o esforço de líderes de associações de moradores, que labutam para a resolução de problemas locais de modo democrático, e também mostra exemplos de pessoas oriundas dessas comunidades economicamente vulneráveis se tornando autossuficientes e prósperas, esvaziando uma mentalidade de vitimização. Sem desconsiderar as diferenças sociais, revela-se que pessoas, mesmo em condições desfavoráveis, podem ser virtuosas e alcançar prosperidade econômica sem apelar para práticas delituosas e criminosas.
Por outro lado, esses líderes expõem a ausência do Estado nas comunidades, gerando territórios sem lei e sem ordem, com um vácuo ocupacional. Essas facções crescem em meados da década de 1980, quando o então governador Leonel Brizola (PDT) proíbe a polícia de entrar nas comunidades conflagradas, gerando um crescimento exponencial das organizações facciosas.
Com o lucro das vendas de entorpecentes e a ocupação territorial, os membros das facções, que usavam armas brancas ou revólveres, passaram a comprar fuzis — armamentos típicos de guerra — para proteção territorial contra facções rivais ou forças de segurança do Estado, que na época só portavam pistolas ou espingardas. Isso gerou a reação das polícias, que passaram a ser munidas de fuzis e veículos blindados para proporcionar uma equiparação de forças e resguardar os agentes de segurança. Nas palavras do delegado Felipe Curi, secretário de Estado da Polícia Civil, o principal problema do Rio de Janeiro é o fuzil.
Os entrevistados argumentam que esses armamentos não são fabricados no Brasil, mas são contrabandeados de fora do país e chegam de modo ilegal às mãos dos membros das facções criminosas. O documentário mostra que, para além das facções criminosas, comunidades que optaram por não dar permissão a elas adotaram milícias populares armadas, sob a argumentação de impedir o ingresso dos traficantes, mas que posteriormente passaram à prática de extorsão dos moradores, expandindo para outros territórios, gerando um outro fenômeno paralelo: as milícias.
Para Visacro, todo ator não estatal armado busca uma legitimidade de forma ilegal à luz do Estado Democrático de Direito. Então, observou-se uma confluência entre as facções criminosas e as milícias: as primeiras passaram a explorar a extorsão territorial, prática comum da segunda, e as segundas passaram a comercializar, de forma ilícita, os entorpecentes, prática comum da primeira. De forma chocante, os entrevistados falam inclusive de serviços de internet oferecidos pelas facções criminosas. A ênfase já não recai mais sobre as drogas, mas sim sobre ocupação e domínio territorial.
Por isso, a exposição e o uso abundante de armamento visam à expansão de domínios territoriais para a geração de lucros para as organizações criminosas. Esses domínios são exercidos por meio de práticas ofensivas ao Estado, como as barricadas — elementos físicos que impedem o ingresso de automóveis em uma determinada via pública — e seteiras — buracos feitos em paredes de concreto, que servem de posição para que atiradores das facções criminosas ou das milícias efetuem disparos sem serem visualizados. Nas palavras de Marcelo Monteiro, esse fenômeno é o crime organizado exercendo o papel de autoridade naquele território.
O documentário também apresenta relatos de situações em que a prática de “justiça paralela”, sem um critério objetivo de lei penal, causou injustiças, como a morte de pessoas inocentes por causa de meros boatos. Inclusive, há agentes do Estado que se pactuam com os delituosos, sendo verbalmente reprovados pelos agentes de segurança entrevistados, como não representantes da categoria.
Uma outra prática, além da guerrilha física, é a guerra informacional, onde uma construção de narrativas sustenta logicamente a retórica das práticas delituosas dos membros de organizações criminosas — como, por exemplo, o uso cultural do ritmo musical chamado funk, que enaltece as práticas criminosas, sem, contudo, generalizar. Segundo Rafael Satiê, a apropriação do ritmo é um retrocesso cultural, se comparado com a bossa nova, por exemplo.
À luz dessa guerra informacional, os entrevistados salientam uma pequena fração de residentes das comunidades que aderem a essas narrativas e veem os delituosos como uma espécie de heróis. Por outro lado, conforme já mencionado, o documentário também apresenta vários residentes atuais e antigos de comunidades que, por meio da virtude, do esforço empregado em trabalhos, habilidades profissionais, empreendimentos e estudos, melhoraram significativamente a situação econômica familiar, revelando que uma pessoa oriunda de uma área economicamente baixa pode melhorar sua vida — e que a opção criminosa é racional e individual, sem uma justificativa social. Isso, sem minimizar os problemas sociais que permeiam a cidade. Um ponto levantado pelo policial civil Beto Chaves é que muitos são cooptados para essas organizações por causa de sua invisibilidade e ausência de formação cultural.
A desastrada intervenção do STF
O capítulo cinco, intitulado “Garoto de Ipanema”, em alusão a um sociólogo apoiador da ADPF 635 (uma ação no STF que, sob o pretexto de proteger direitos humanos, dificulta operações policiais nas favelas do Rio, enfraquecendo o combate ao crime organizado), residente no bairro supracitado, aborda a dificuldade criada por esse decreto em operações policiais em comunidades. O problema é que a ausência das forças de segurança do Estado nessas áreas fortalece ainda mais as organizações criminosas que ocupam tais territórios.
Nas palavras do delegado Fabrício de Oliveira (CORE), há uma diferença entre o policial que, fazendo seu trabalho, se defende de disparos, amparado pela lei, e os criminosos que, intencionalmente, efetuam disparos atacando as forças do Estado e acabam indo a óbito em legítima defesa policial — mostrando que a lógica da narrativa da letalidade policial é falaciosa.
Para o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor Santos, a dificuldade da ADPF 635 é a definição técnica do conceito de “excepcionalidade”. O que seria “excepcionalidade”? Será que a situação atual apresentada no documentário não seria uma “excepcionalidade”? Sendo apenas sinônimo de tragédia, basta? Para os entrevistados, o impacto da ADPF 635 é negativo, pois propicia a expansão do domínio territorial através das organizações criminosas. Como consequência, o documentário lista chefes de facções de “filiais” fora do Rio de Janeiro que encontraram na cidade, nas comunidades ocupadas, abrigo.
Rodrigo Pimentel salienta que esse fenômeno ocupacional de território do Rio de Janeiro foi exportado para outros estados. O epílogo salienta que as causas da criminalidade no Rio de Janeiro são complexas e que a situação é similar à de uma guerra, requerendo ação cirúrgica e necessária, pois a consequência da omissão será de alta gravidade. Há uma necessidade urgente de um revisionismo na legislação penal, para a persuasão de que o crime não compensa.
O Rio de Janeiro também não conseguirá vencer essa situação sem ajuda externa do governo federal. Há uma necessidade urgente de retomada do controle territorial, mas também da retomada humana — de formação holística para os que residem nesses territórios, apresentando, sobretudo, elementos de redenção pessoal, como a família.
Uma comovente homenagem
O documentário Rio de Janeiro: paraíso em chamas é muito realista e tocante, com cenas violentas embaçadas e linguagem forte em gravações, sendo uma demonstração do estado atual do Rio de Janeiro.
A expectativa é que seja uma ferramenta de conscientização e mudança dessa realidade, para a retomada da identidade do Rio de Janeiro como a antiga capital nacional — e até mesmo do Império de Portugal — como uma expressão de virtude para o Brasil e para o mundo. A obra termina sendo dedicada à memória do policial civil, lotado na CORE, João Pedro Marquini Santana, morto por disparo de criminosos no dia 30 de março de 2025.
(*Franklin Ferreira é bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Bíblia e Teologia pela Universidade Luterana do Brasil, mestre em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e doutor em Divindade pelo Puritan Reformed Theological Seminary. É reitor e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos (SP), professor-adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids-MI (Estados Unidos), e consultor acadêmico de Edições Vida Nova. Autor de vários livros, entre eles Teologia Sistemática (em coautoria com Alan Myatt), A Igreja Cristã na História, Avivamento para a Igreja, Contra a Idolatria do Estado, Pilares da fé e Por amor de Sião, publicados por Edições Vida Nova, e Servos de Deus e O Credo dos Apóstolos)