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Espionagem: ESPIÕES DA RÚSSIA USARAM BRASIL COMO BASE DE OPERAÇÕES, AFIRMA NEW YORK TIMES

Agentes se passavam por brasileiros antes de seguir para missões nos EUA, Europa e Oriente Médio, diz NYT.

Artem Shmirev enganou todo mundo. O oficial da inteligência russa parecia ter construído a identidade falsa perfeita. Tocava um negócio bem-sucedido de impressão 3D e dividia um apartamento de alto padrão no Rio de Janeiro com sua namorada brasileira e um gato Maine coon laranja e branco.

Mas o mais importante: ele tinha uma certidão de nascimento e um passaporte autênticos que consolidavam seu disfarce como Gerhard Daniel Campos Wittich, um cidadão brasileiro de 34 anos. Após seis anos vivendo sob disfarce, ele estava impaciente para começar o verdadeiro trabalho de espionagem.

A imagem apresenta uma grade com seis retratos de pessoas. Os retratos estão organizados em duas colunas e três linhas. As pessoas têm diferentes estilos de cabelo e expressões faciais. A primeira linha contém duas mulheres e um homem, enquanto a segunda linha apresenta três homens e uma mulher. O fundo é claro e as imagens têm um estilo de retrato padrão.
Espiões russos, no sentido horário, a partir do canto superior esquerdo: Iekaterina Leonidovna Danilova, Vladimir Aleksandrovitch Danilov, Olga Igorevna Tiutereva, Aleksandr Andreyevitch Utekhin, Irina Alekseievna Antonova e Roman Olegovitch Koval – The New York Times

“Ninguém quer se sentir um perdedor”, escreveu ele em uma mensagem de texto em 2021 para sua esposa russa, também agente da inteligência, “Por isso continuo trabalhando e esperando.”

E ele não estava sozinho. Durante anos, segundo uma investigação do New York Times, a Rússia usou o Brasil como plataforma de lançamento para seus oficiais de inteligência mais qualificados, conhecidos como ilegais. Em uma operação audaciosa e de longo alcance, os espiões deixaram para trás seus passados russos. Abriram empresas, fizeram amigos e se envolveram em relacionamentos amorosos —eventos que, ao longo dos anos, se tornaram os tijolos de identidades totalmente novas.

Grandes operações de espionagem russas já foram descobertas no passado, incluindo nos Estados Unidos em 2010. Mas esta era diferente. O objetivo não era espionar o Brasil, mas se tornar brasileiro. Com histórias de vida críveis, os agentes partiriam para EUA, Europa ou Oriente Médio para, então, iniciar seu trabalho real.

Lá Fora

A Rússia basicamente transformou o Brasil numa linha de montagem de agentes secretos disfarçados, como Shmirev.

Um abriu uma joalheria. Outra era uma modelo loira, de olhos azuis. Um terceiro foi aceito em uma universidade americana. Uma suposta pesquisadora brasileira conseguiu trabalho na Noruega. Um casal foi para Portugal.

E então tudo desmoronou.

Nos últimos três anos, agentes de contrainteligência brasileiros têm caçado esses espiões de forma silenciosa e metódica. Com trabalho policial minucioso, eles descobriram um padrão que lhes permitiu identificar os espiões, um por um.

Segundo documentos e entrevistas, agentes descobriram ao menos nove oficiais russos operando sob identidades brasileiras falsas. Seis deles jamais haviam sido identificados publicamente até agora. A investigação já se estendeu por pelo menos oito países, segundo autoridades, com colaboração de serviços de inteligência de EUA, Israel, Holanda, Uruguai e outros países ocidentais.

A partir de centenas de documentos investigativos e entrevistas com dezenas de policiais e oficiais de inteligência em três continentes, o jornal americano The New York Times reconstruiu os detalhes da operação de espionagem russa no Brasil e os esforços secretos para desmontá-la.

Desmantelar a “fábrica de espiões” do Kremlin foi mais do que uma ação rotineira de contraespionagem. Foi parte dos efeitos colaterais de uma década de agressões russas. Espiões russos ajudaram a derrubar um avião de passageiros que voava de Amsterdã em 2014. Interferiram em eleições em EUA, França e outros países. Envenenaram opositores e planejaram golpes de Estado.

Mas foi a decisão do presidente Vladimir Putin de invadir a Ucrânia, em fevereiro de 2022, que galvanizou uma reação global contra os espiões russos —mesmo em países onde esses agentes atuavam com certo grau de impunidade. Entre eles estava o Brasil, que historicamente seguiu, e segue, mantendo relações amistosas com a Rússia, apesar dos fatos trazidos a público só agora.

A investigação brasileira foi um golpe devastador no programa de ilegais de Moscou. Eliminou um grupo de oficiais altamente treinados que serão difíceis de substituir. Pelo menos dois foram presos. Outros fugiram às pressas de volta para a Rússia. Com suas coberturas destruídas, provavelmente nunca mais atuarão no exterior.

No centro dessa derrota extraordinária estava uma equipe da Polícia Federal, o mesmo grupo que investigou o ex-presidente Jair Bolsonaro por planejar um suposto golpe. De sua sede de vidro moderna em Brasília, passaram anos vasculhando milhões de registros de identidade brasileiros em busca de padrões. A operação ficou conhecida como Operação Leste.

    Fantasmas no sistema

    Em abril de 2022, poucos meses após as tropas russas invadirem a Ucrânia, a CIA enviou uma mensagem urgente à Polícia Federal brasileira.

    Os americanos informaram que um oficial da inteligência militar russa havia aparecido na Holanda para fazer um estágio no Tribunal Penal Internacional —justamente quando o tribunal começava a investigar crimes de guerra russos na Ucrânia.

    O estagiário viajava com um passaporte brasileiro no nome de Victor Muller Ferreira. Ele havia concluído um mestrado na Universidade Johns Hopkins com esse nome. Mas seu nome verdadeiro, segundo a CIA, era Serguei Tcherkasov. As autoridades holandesas negaram sua entrada e o mandaram de volta a São Paulo.

    Com poucas provas e apenas algumas horas para agir, os brasileiros não tinham autoridade para prendê-lo no aeroporto. Assim, durante dias tensos, os policiais o mantiveram sob vigilância intensa enquanto ele permanecia livre num hotel em São Paulo.

    Finalmente, os agentes conseguiram um mandado e o prenderam —não por espionagem, mas por uso de documentos falsos. Mesmo isso foi mais difícil do que se esperava. Interrogado, Tcherkasov manteve a pose, insistindo que era brasileiro. E tinha os documentos para provar.

    Seu passaporte brasileiro azul era autêntico. Ele tinha título de eleitor e certificado de serviço militar obrigatório. Todos eram genuínos. “Não havia vínculo entre ele e a Rússia”, disse um investigador da Polícia Federal, sob condição de anonimato.

    Foi só quando encontraram a certidão de nascimento que a história de Tcherkasov —e toda a operação russa no Brasil— começou a ruir.

    Diferentemente de outras ocasiões em que espiões russos usavam nomes de pessoas mortas, como bebês falecidos, neste caso Victor Muller Ferreira nunca existiu. Ainda assim, tinha uma certidão autêntica.

    O documento dizia que ele nascera no Rio de Janeiro em 1989, filho de uma brasileira real que morreu quatro anos depois. Mas, ao localizar a família da mulher, os agentes descobriram que ela nunca teve filhos. Ninguém com o nome do pai foi encontrado.

    A descoberta levantou perguntas alarmantes. Como um espião russo conseguiu documentos verdadeiros com um nome falso? E, se um conseguiu, por que outros não conseguiriam?

    A PF começou então a buscar o que chamou de fantasmas: pessoas com certidões de nascimento válidas, mas sem qualquer rastro de vida no Brasil, que apareciam repentinamente como adultos buscando documentos.

    Para encontrar esses fantasmas, os agentes passaram a procurar padrões em milhões de registros de nascimento, passaportes, carteiras de motorista e CPFs. Parte do processo podia ser automatizada, mas muitos bancos de dados brasileiros não são interligáveis digitalmente. Muito teve de ser feito à mão.

    Essa análise permitiu à Operação Leste desvendar toda a operação russa. “Tudo começou com Sergei”, disse um alto funcionário brasileiro.

    A imagem apresenta seis retratos estilizados de pessoas, dispostos em um fundo preto. Cada retrato é emoldurado em uma cor diferente: azul, verde, amarelo, vermelho e duas em branco. As faces estão em um estilo gráfico, com traços simplificados. Linhas brancas cruzam o fundo, criando um padrão dinâmico.
    Retratos estilizados de seis espiões russos que assumiram identidades brasileiras – Lucy Jones/NYT

    As pessoas especiais de Putin

    Todos os espiões enfrentam o mesmo desafio: criar uma identidade falsa que resista ao escrutínio. Na era digital, onde quase todo mundo tem algum histórico online, isso ficou muito mais difícil.

    Para a Rússia, o desafio é ainda maior. Ao contrário de outras potências que contam com redes locais de informantes, Moscou mantém uma tradição soviética: agentes que vivem décadas como outras pessoas, sob identidades totalmente inventadas.

    O próprio Putin reconheceu ter supervisionado esses agentes quando era um jovem oficial da KGB na Alemanha Oriental, ao fim da Guerra Fria.

    “São pessoas especiais, com qualidades e convicções especiais”, disse ele em uma entrevista de 2017. “Deixar sua vida anterior, seus entes queridos, seu país, por muitos e muitos anos para servir à pátria —isso não é para qualquer um. Só os escolhidos conseguem.”

    O Brasil parecia ideal para esses agentes escolhidos. O passaporte brasileiro é um dos mais poderosos do mundo, permitindo viagens sem visto para quase tantos países quanto o americano. Alguém com feições europeias e sotaque leve dificilmente chama atenção no Brasil multiétnico.

    Além disso, o sistema brasileiro permite exceções: em áreas rurais, basta a declaração de duas testemunhas sobre o nascimento de uma criança para que se emita a certidão —um ponto frágil que pode ser explorado, especialmente em um sistema descentralizado e vulnerável à corrupção.

    Com a certidão em mãos, basta tirar os demais documentos —e então viajar para qualquer lugar do mundo.

    A quebra do sigilo

    Um dos primeiros nomes que chamou a atenção dos investigadores foi Gerhard Daniel Campos Wittich. A certidão indicava que ele nascera no Rio em 1986, mas só havia surgido em 2015.

    Quando os agentes começaram a investigar, Shmirev já havia construído uma identidade tão convincente que nem a namorada ou colegas desconfiavam. Falava português perfeito, com leve sotaque, que dizia vir da infância na Áustria.

    Ele colocava toda sua energia em sua empresa de impressão 3D, a 3D Rio, que fundou do zero e parecia cuidar com dedicação. Trabalhava longas horas em um prédio no centro do Rio, a poucos metros do consulado americano.

    “Era um viciado em trabalho”, disse Felipe Martinez, ex-cliente e amigo de Shmirev. “Ele pensava grande, sabe?”

    Em privado, ele estava entediado e frustrado com a vida sob disfarce. “Sem conquistas reais no trabalho”, escreveu à esposa. “Não estou onde deveria estar há dois anos.” Ela respondeu friamente: “Se queria uma vida familiar normal, escolheu mal. (…) Nos enganaram.”

    Seis meses depois, a Rússia invadiu a Ucrânia. O mundo passou a cooperar para desmantelar a espionagem russa. A vida dos espiões virou de cabeça para baixo.

    Primeiro, prenderam Tcherkasov. Depois, outro agente sob investigação no Brasil foi preso na Noruega. Dois outros foram detidos na Eslovênia, vivendo sob identidades argentinas. No fim de 2022, o cerco a Shmirev apertava.

    Mas ele escapou poucos dias antes de a PF desmascará-lo. Tinha passagem de volta marcada para 2 de fevereiro de 2023. Mandados de prisão estavam prontos. Ele nunca voltou.

    “O que é pior que ser preso?”

    Shmirev não foi o único a escapar.

    Um casal vivendo como Manuel Francisco e Adriana Carolina Pereira foi para Portugal em 2018 e sumiu. Outros espiões com documentos brasileiros foram vistos no Uruguai, inclusive uma mulher loira que se passava por modelo.

    A melhor chance de prisão parecia ser um joalheiro chamado Eric Lopes, na verdade o espião Aleksandr Utekhin. Mas quando os agentes chegaram, a loja havia desaparecido. Ele teria passado pelo Oriente Médio antes de retornar à Rússia.

    Sem prisões, os brasileiros decidiram que havia algo ainda pior do que ser preso: ser exposto.

    Com isso em mente, usaram a Interpol de forma criativa. Emitiram notificações azuis —alertas que não levam à prisão, mas espalham informações pelo mundo. As fotos, impressões digitais e nomes falsos de espiões como Shmirev e Tcherkasov foram distribuídas aos 196 países-membros.

    Uruguai fez o mesmo com outros três suspeitos: Roman Koval, Irina Antonova e Olga Tiutereva. Com os disfarces queimados, dificilmente esses espiões poderão atuar no exterior novamente.

    Dos identificados, só Tcherkasov está preso, por uso de documentos falsos. Pegou 15 anos, depois reduzidos para cinco.

    A Rússia alegou que ele era um traficante e pediu extradição. Mas o Brasil contestou: se era traficante, tinha que continuar preso para ser investigado. Ele segue numa cela em Brasília.

    (Da Redação com NYT)

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